Durante grande parte das últimas duas décadas, o lema do Vale do Silício era basicamente o mesmo do antigo lema do Facebook: “mova-se rapidamente e quebre coisas”. Mas, numa mudança súbita e vertiginosa, o estado de espírito atual no setor de tecnologia poderia talvez ser mais bem descrito por um mantra muito mais limitado: “reduza os custos e tente sobreviver”.
O setor de tecnologia enfrenta um novo choque de realidade, já que as condições econômicas no quadro geral se deterioraram. Toda semana surgem empresas de tecnologia dizendo que elas que estão demitindo e implementando o congelamento das contratações, ao mesmo tempo em que as ações de tecnologia apanham, as criptomoedas desabam e pessoas dentro e fora da indústria advertem sobre uma possível recessão.
O Vale do Silício também é provavelmente mais sensível do que alguns setores à mudança das condições econômicas, principalmente as trazidas pelo aumento das taxas de juros, dado o número de empresas de tecnologia que depende do fácil acesso ao financiamento para prosseguirem com projetos ambiciosos, antes de lucrarem —ou, em alguns casos, até mesmo antes de gerarem receita.
Nas últimas semanas, investidores e veteranos do setor têm tentado soar alarmes sobre o ambiente econômico, escrevendo memorandos, tuítes e fazendo declarações públicas.
“Os tempos de boom da última década sem dúvida acabaram”, escreveu recentemente num blog a empresa de capital de risco LightSpeed, uma apoiadora do Snapchat desde os primeiros dias. “Ninguém pode prever o tamanho da crise na economia, mas as coisas não parecem boas”, advertiu a aceleradora de startups Y Combinator em uma carta aos fundadores. E acrescentou: “o movimento seguro é se planejar para o pior”.
Bill Gurley, um proeminente investidor de capital de risco, resumiu a mudança de humores em um tuíte no mês passado, aparentemente dirigido às startups tecnológicas que podem estar em negação. “O custo do capital mudou materialmente, e se você acha que as coisas são como elas eram, está seguindo num penhasco”.
Embora ninguém possa prever a duração ou a gravidade da atual recessão do mercado —e a maioria dos observadores do setor não espera que seja tão prejudicial como o colapso tecnológico de 2000—, a nova retórica marca uma dura reversão de tom para uma área que sempre voou alto.
O setor da tecnologia, já dominante nas nossas vidas, parecia se expandir cada vez mais com a pandemia forçando as pessoas a trabalhar, comprar e socializar através de uma tela. O número de unicórnios, ou startups avaliados em US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,89 bilhões) ou mais, superou 1.000 globalmente em fevereiro, praticamente duplicando a quantidade de antes da pandemia.
O acesso a dinheiro fácil, graças em parte às baixas taxas de juros destinadas a balizar a economia, só parecia alimentar ainda mais empreendimentos vistosos e que queimam muito dinheiro.
Depois veio uma tempestade aparentemente perfeita: as pressões inflacionárias, a invasão russa ainda em curso na Ucrânia, o aumento das taxas de juros e os avisos de recessão causaram estragos no mercado de ações, e mais especificamente no setor da tecnologia.
O índice Information Technology do S&P 500 caiu 19% desde o início do ano, de acordo com números de quarta-feira (8), e o índice de tecnologia Nasdaq caiu mais de 20%. Em um sinal dos tempos, a Apple perdeu o posto no mês passado de empresa mais valiosa do mundo para a gigante petrolífera saudita Aramco.
Há também indícios de problemas em empresas de capital fechado de tecnologia, incluindo relatos de markdown (redução de preço) de avaliação. Houve também uma onda de demissões no setor, incluindo na plataforma de trading Robinhood, na fintech e unicórnio Klarna e em várias startups de entregas ultrarrápidas.
“São correções sempre perversas e súbitas, e é incrível como rapidamente todos os especialistas e gurus mudam seu discurso”, disse à CNN Vasant Dhar, professor da Stern School of Business da Universidade de Nova York. “O mercado sempre tem amnésia”, opinou.
Dhar, que trabalhou com tecnologia durante décadas, disse que resistiu a vários booms e quedas durante sua carreira, incluindo a bolha das empresas pontocom em 2000 e a crise financeira em 2008. No entanto, diz, “são sempre os mais jovens que, como diz Bob Marley, não conhecem a própria história e se atropelam. E então as coisas se corrigem —e se corrigem muito subitamente”.
“Uma grande mudança”
Desde a última recessão prolongada no setor de tecnologia, algumas figuras mais antigas do Vale do Silício utilizam as suas plataformas para tentar mostrar como as coisas funcionavam aos técnicos que nunca trabalharam no antigo ambiente.
“Ninguém pode prever o que vai acontecer nos próximos 12 meses, mas não temos uma recessão tecnológica real desde 2000”, escreveu num fio do Twitter no mês passado Mike Schroepfer, que fundou uma startup em 2000 e mais tarde serviu como CTO no Facebook.
“Eu não tenho ideia se agora vai ser a mesma coisa, melhor, ou pior do que o crash da década de 2000. Mas os maus tempos podem durar vários anos e, se você pode tomar decisões agora que prolonguem seu caminho, será provavelmente a saída certa”.
Durante grande parte da última década, o acesso a dinheiro fácil, combinado com o aumento dos smartphones, ajudou a impulsionar uma onda de empresas tecnológicas ambiciosas e disruptivas, capazes e dispostas a queimar milhões, ou mesmo bilhões, em capital de risco ao buscar crescimento rápido e global. Várias startups de tecnologia, de Uber a WeWork, viraram nomes familiares mesmo que, ao mesmo tempo, nunca tenham apresentado um lucro consistente. A era inspirou várias produções recentes de Hollywood, todas glamourizando os excessos vividos pelos fundadores dessas empresas, como se fosse um mercado de ganhos infinitos. Mas, em um outro sinal dos tempos, a Uber sinalizou no mês passado que também pretende cortar custos e “tratar a contratação como um privilégio”, com o recuo do otimismo dos investidores.
“É uma grande mudança de maré”, afirmou Matt Kennedy, estrategista sênior do mercado de IPO da Renaissance Capital, que faz pesquisas pré-IPO e ETFs focados no IPO. “Durante anos, as startups seguiram geralmente o mesmo roteiro, de crescer o mais rápido possível a qualquer taxa de queima. Era isso que os seus investidores queriam ver. O capital era barato, por isso as perdas não importavam”.
“Mas isso mudou. Mais uma vez, os lucros importam”, acrescentou. “Acho que os investidores estão olhando mais de perto para os resultados”.
Um ambiente mais difícil para startups não é necessariamente prejudicial para todas as empresas, embora possa ser “pior para aquelas sem substância”, pontuou Dhar.
Para o professor, os empreendimentos de maior risco e as startups em estágios bem iniciais tendem a sofrer em tempos econômicos difíceis, mas as empresas em estágios avançados, apoiadas por capital de risco, podem achar vantajosa a evaporação repentina da “competição chata”.
Kennedy acrescentou que muitas startups de tecnologia de crescimento rápido “precisam de financiamento para sobreviver” e que mais problemas podem surgir no caminho. “Elas vêm operando apenas como negócios de alta perda e é uma virada difícil de fazer”, disse. “Como resultado, devemos ver rodadas de demissões e quedas. Algumas destas empresas fecharão as portas, outras serão adquiridas”.
Fonte: CNN Brasil